SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Horrorizado diante da estreia da ópera “Wozzeck”, em dezembro de 1925, em Berlim, um crítico musical escreveu “tenho a impressão de ter ido não a um teatro, mas a um hospício.”A repulsa à criação do compositor austríaco Alban Berg estava longe de ser unânime. Um outro especialista disse que se tratava de um “evento significativo na história do drama musical”.

Nas décadas seguintes, as reações entusiasmadas prevaleceram diante da primeira e mais famosa ópera de Berg, que se consolidou como um marco do expressionismo musical. Surgido no início do século 20 na Alemanha e na Áustria, o movimento ficou marcado por características como as harmonias complexas, as distorções melódicas e o atonalismo —na música tradicional, a melodia e a harmonia giram em torno de uma nota central; na atonal, essa regra deixa de fazer sentido.

Mas a capital alemã de um século atrás não via apenas uma revolução do ponto de vista musical. Berg se baseava na peça teatral inacabada escrita por Georg Büchner, um escritor e médico alemão que morreu com apenas 23 anos, em 1837. Embora não fosse recente, o texto de Büchner ainda soava como um assombro.

O autor alemão havia contado a história de um soldado de baixa patente que é explorado pelos outros militares do seu quartel e humilhado pela sua companheira, a mãe de seu filho, além de se tornar experimento científico nas mãos de um médico sádico. A miséria acentuava as perturbações mentais do protagonista e, assim, a degradação parecia não ter fim.

Sob a regência do seu diretor musical, o suíço Thierry Fischer, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Osesp, revive a queda num abismo do soldado de Georg Büchner, relida pela partitura de Berg. Com estreia nesta terça-feira, na Sala São Paulo, a obra terá apenas três apresentações.

É oportunidade rara no Brasil. Uma das óperas do século 20 mais encenadas na Europa, “Wozzeck” só foi vista uma vez no país, em dezembro de 1982, no Theatro Municipal de São Paulo, afirma André Heller-Lopes, diretor cênico deste novo “Wozzeck”. Com a Orquestra Sinfônica Municipal, a montagem era conduzida pelo maestro Isaac Karabtchevsky.

“Wozzeck” volta a São Paulo, mas sem as configurações de uma ópera em seu sentido tradicional. Ele a chama de concerto cênico, em que os cantores apresentam os movimentos e os climas dramáticos em meio a poucos elementos cenográficos. Não existe, portanto, uma encenação detalhada.

Segundo o diretor cênico, “Wozzeck” tem se tornado um fetiche para os “autodeclarados modernos”, diz ele, num tom bem-humorado. “Tudo com muito gelo seco, todo mundo descabelado. Não tem que ser assim”, afirma.

“O primeiro desafio era entender o que é essencial para a obra e como esse essencial se traduz em cores”, diz Heller-Lopes, responsável por figurinos que se resumem a preto, branco, prata e vermelho.

Sem um aparato extenso de cenografia, a atual montagem sugere mais do que esmiúça. “Queremos convidar a imaginação das pessoas a fazer parte dessa experiência musical e cênica”, afirma Heller-Lopes.

Essa abordagem mais sutil não reduz o tom sombrio e comovente de “Wozzeck”. A obra de Alban Berg não segue à risca o texto de “Woyzeck”, de Georg Büchner, mas a ruína moral, psicológica e econômica é espantosa em ambas as criações —a difícil caligrafia do autor alemão levou as primeiras edições da peça a serem publicadas como “Wozzeck”, inclusive a ópera; só mais tarde, o nome foi corrigido para “Woyzeck”. Em seu filme de 1979, o alemão Werner Herzog adotou a grafia “Woyzeck”.

No primeiro ato, o personagem chamado apenas de capitão revela prazer em constranger e manipular Wozzeck. “É como se ele botasse os dedos dentro do cérebro do soldado”, diz Heller-Lopes. “Wozzeck vai perdendo o chão.”

Na edição da Hedra, de 2003, o tradutor Tércio Redondo escreveu que o soldado de Büchner é o primeiro protagonista plebeu do teatro alemão. É esse um dos pontos de contato entre Wozzeck e o barítono Robin Adams, que assume o papel principal. O intérprete lembra a sua infância pobre na região de Manchester, no noroeste da Inglaterra, como um dos fatos que o aproximam do protagonista.

Segundo o barítono, o papel exige bastante preparo devido à variedade das emissões sonoras, algumas de difícil alcance. “Há momentos em que quase grito e existem passagens em que canto com suavidade. Estou sempre em busca de novas nuances”, afirma.

Além de Adams, participam nomes como a soprano alemã Astrid Kessler, que interpreta Marie, a companheira do soldado; o tenor austríaco Thomas Ebenstein, que dá vida ao capitão; e a brasileira Luisa Francesconi no papel de Margret, amiga de Marie.

A arquitetura musical de “Wozzeck” expõe uma estrutura incomum. São três atos com cinco cenas cada um, e cada cena tem a predominância de uma forma musical. No primeiro ato, por exemplo, há uma suíte, uma marcha militar e até uma canção de ninar. O terceiro ato, por outro lado, ressalta soluções menos convencionais, as chamadas invenções.

“Para alcançar uma abordagem emocional, os cantores precisam estar no auge de sua capacidade”, diz Thierry Fischer. Tampouco é pequeno o desafio da orquestra. Segundo o maestro, a montagem “exige dos músicos uma concentração constante, com controle da técnica e da projeção sonora”. “Não podemos tocar muito alto para não abafar os cantores.”

Os ingressos estão disputados, e, como alternativa, o público poderá acompanhar a transmissão do evento no sábado, à tarde, pelo canal da Osesp no YouTube.

WOZZECK

– Quando Ter. (2) e qui. (4), às 19h30; sáb. (6), às 16h30

– Onde Sala São Paulo – Praça Júlio Prestes, 16, São Paulo

– Preço De R$ 42 a R$ 295

– Elenco Robin Adams, Jason Bridges e Astrid Kessler

– Direção Thierry Fischer e André Heller-Lopes